A Aproximação Facial da “Vampira” de Veneza (Séc. XV-XVII)

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Cicero Moraes
* 3D Designer, Arc-Team Brazil, Sinop-MT, Brasil - Bacharel em Marketing, Dr. h. c. FATELL/FUNCAR (Brasil) e CEGECIS (México) - Membro da Mensa Brasil e da Intertel - Revisor convidado: Elsevier, Springer Nature e PLoS - Guinness World Records 2022: First 3D-printed tortoise shell.
Data da publicação: 25 de março de 2024
ISSN: 2764-9466 (Vol. 5, nº 1, 2024)

Atenção

Este material utiliza a seguinte licença Creative Commons: Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0).

Aviso

O presente trabalho é independente, sem vínculo com a instituição que guarda os restos mortais aqui abordados, tampouco com as universidades e instituições que estudaram-no dentro do escopo forense. O elemento motivador do capítulo é a criação de material didático para o ensino da técnica de aproximação facial, ao testar a possibilidade de se reconstruir uma face e proceder com experiências estruturais utilizando dados originalmente disponíveis em matérias de jornais, livros e journals acadêmicos.

Introdução

A Descoberta do Crânio

Entre os anos de 2006 e 2007 a Superintendência Arqueológica de Vêneto (Itália), lançou um projeto de pesquisa das valas funerárias de Nuovo Lazzaretto, em Veneza, onde se encontravam vítimas da peste que morreram entre os séculos XV e XVII. Durante os trabalhos o crânio de um dos túmulos (nomeado ID6) chamou a atenção, pois a mandíbula estava aberta e no interior da cavidade oral havia um tijolo de pedra. Estudos foram feitos para saber se o posicionamento do tijolo fora acidental ou deliberado e os resultados rejeitaram a primeira hipótese, indicando que a colocação do tijolo foi intencional e fazia parte de um ritual simbólico de sepultamento. Os pesquisadores aferiram que ao observarem o corpo com a mortalha, os responsáveis pelo sepultamento notaram uma depressão na região da boca, indicando uma potencial mastigação. Ao supostamente identificarem um vampiro, um dos culpados pela peste segundo o mito popular de então, introduziram a pedra como elemento de proteção, evitando que se alimentasse e também que infectassem outras pessoas. Estudos indicaram que o crânio pertenceu a uma mulher de ancestralidade europeia, que faleceu por volta do 61 (±5) anos de idade, pertenceu a classe baixa e se alimentava principalmente de grãos e vegetais [E_Nuzzolese_2010] [E_Reuters_2009] [E_DellaAmore_2010].

A descoberta suscitou grande interesse por conta da mídia no ano de 2009 [E_Reuters_2009] [E_DellaAmore_2010]. Uma série de agências de notícias veicularam matérias acerca das escavações e o canal National Geographic produziu material abordando a descoberta e a aproximação facial forense do crânio (Explorer: Vampire Forensics, 2009), nomeado posteriormente de Carmilla [E_Guenot_2022], provavelmente em alusão à obra de Joseph Sheridan Le Fanu, escrita em 1871-72.

As Controvérsias em Relação aos Achados

Anos depois da publicação dos estudos iniciais por Nuzzolese e Borrini (2010) [E_Nuzzolese_2010] envolvendo a descoberta no sepultamento ID6, um comentário veiculado no mesmo Journal Forensic Sciences indicou uma série de problemas envolvendo a abordagem da questão vampiresca. Segundo Minozzi et al. (2012) [E_Minozzi_2012] o estudo, que havia alcançado grande cobertura midiática, carecia de explanações mais detalhas acerca dos parâmetros que levaram os autores a aferirem que a colocação do tijolo havia sido deliberada e não fruto do acaso. Segundo os autores contava-se com suficiente documentação para refutar a abordagem da intencionalidade, uma vez que eram conhecidos outros casos de elementos externos que se deslocavam e se inseriam dentro da cavidade oral dos crânio, a exemplo de outro crânio, também encontrado na Itália, com uma pedra tocando a mandíbula e outro, no cemitério de Vecchio Lazzaretto, que parece morder um fêmur. Os autores indicam que a entrada do tijolo antes da esqueletização do corpo poderia ter danificado os dentes, dentre outras observações que se apoiavam principalmente na falta de documentação mais detalhada por parte dos especialistas de Nuovo Lazaretto [E_Minozzi_2012].

O Interesse Pelo Presente Projeto

Ao ler sobre o crânio da “Vampira” de Veneza o autor tomou conhecimento das controvérsias envolvendo os achados e a questão mais importante de todo o desdobramento popular, ou seja, a presença de um tijolo na cavidade oral do crânio, que levantou especulações acerca de como ele poderia ter parado naquela posição. A plasticidade da imagem por si só já chama bastante a atenção, o atrelamento a um ritual anti-vampiresco justamente em um momento em que uma obra de ficção envolvendo a mesma criatura fantástica era festejada no cinema (saga Crepúsculo), fez com que a descoberta recebesse ampla cobertura midiática, convertendo-a, além de fruto de um debate técnico, em um símbolo cultural. Se por um lado a abordagem presente em [E_Nuzzolese_2010] carece explicações mais detalhadas, frente a extraordinária proposta e ao grande desafio de indicar um argumento que sustente a questão do posicionamento deliberado da peça, por outro lado as críticas de [E_Minozzi_2012] também não apresentaram detalhes robustos para que o elemento de negação completa proposto no material pudesse ser plenamente aceito, embora a abordagem do segundo grupo seja mais simples e conte com elementos que fundamentam parte substancial da análise. O fato é que, frente aos recursos disponíveis parecia acessível responder ao menos a uma questão: seria possível inserir um tijolo com aquelas dimensões na cavidade oral, mantendo as estruturas anatômicas ósseas e quiçá do tecido mole, intactas? A abundância de material disponível indicava que sim.

Materiais e Métodos

O processo técnico utilizado neste capítulo é muito compatível com aquele abordado na aproximação facial de Dante Aliguieri, presente no mesmo número deste periódico técnico científico [E_Moraes_2024]. Como tal capítulo está amplamente detalhado, algumas explanações aqui presente serão simplificadas, caso haja dúvidas, o leitur pode recorrer à referência informada e a Declaração de Dados lá presente.

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Fig. 77 Referências para a reconstrução do crânio.

A publicação de [E_Nuzzolese_2010] forneceu alguns parâmetros métricos e estruturais, além da abundância de imagens disponíveis na internet e vídeos relacionados aos documentários do sepultamento ID6. Medidas e projeções foram efetuadas até compor a vista frontal e lateral do crânio, além das arcadas dentárias (Fig. 77).

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Fig. 78 Reconstrução do crânio a partir de uma doadora virtual.

O crânio de uma doadora virtual advindo de uma tomografia computadorizada foi importado e ajustado para se adequar à referências do indivíduo ID6 (Fig. 78).

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Fig. 79 Posicionamento dos marcadores de espessura de tecido mole e traçado do perfil da face.

Com o crânio disponível foi possível distribuir os marcadores de espessura de tecido mole, com uma tabela de europeus vivos de 60+ anos de idade [E_De_Greef_2006] (Fig. 79, à esquerda). Em seguida o nariz foi projetado a partir de dados extraídos de mensurações efetuadas em tomografias de indivíduos vivos de ancestralidades diferentes [E_Moraes_2021] [E_Moraes_2022]. A partir de todas as informações projetadas, foi possível traçar o perfil da face (Fig. 79, à direita).

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Fig. 80 Deformação anatômica.

Para complementar os dados da aproximação facial é efetuado o processo deformação anatômica, onde a tomografia de uma doadora virtual é reconstruída em 3D e o crânio da doadora é ajustado até que se converta em uma peça compatível com o crânio ID6 de modo que o tecido mole também se deforme, gerando uma face compatível com as estruturas do rosto em vida (Fig. 80).

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Fig. 81 Deformação anatômica com perfil da face e projeções baseadas em mensuração de tomografias.

A deformação anatômica além de gerar uma face compatível com a projeção de perfil (Fig. 81, à esquerda) também fornece dados estruturais em outras regiões do crânio, inclusive aquelas não contempladas pelos marcadores de espessura de tecidos moles. Outra camada de projeção ainda é utilizada, trata-se das médias e proporções baseadas em pontos anatômicos do crânio a ser aproximado, extraídas de medidas efetuadas em tomografias computadorizadas de indivíduos vivos [E_Moraes_2022].

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Fig. 82 Comparação das projeções e ajuste do busto final.

As projeções frontais se compatibilizaram com a deformação anatômica (Fig. 82, à esquerda). Segundo o passo-a-passo utilizado na aproximação facial abordada em [E_Moraes_2024], o busto de outra aproximação é aproveitada e ajustada, interpolando os dados de todas as projeções (Fig. 82, à direita).

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Fig. 83 Malha final com ajuste do ângulo na nariz.

A malha final é gerada com o ajuste do ângulo nasal, compatibilizando-o com a idade do indivíduo aproximado (Fig. 83) [E_Shastri_2021].

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Fig. 84 Recorte do tijolo encontrado na cavidade oral de do crânio ID6.

Utilizando os dados presentes no artigo de [E_Nuzzolese_2010] e imagens disponíveis na internet, o tijolo encontrado na cavidade oral do crânio ID6 foi recortado em uma peça de isopor com semelhantes dimensões (Fig. 84).

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Fig. 85 Teste prático de inserção da peça na cavidade oral.

Um teste foi efetuado com a peça, inserindo-a na cavidade oral e analisando a deformação estrutural da pele, bem como a rotação da mandíbula (Fig. 85). A experiência demonstrou que é possível a colocação da estrutura sem danificar os dentes e mesmo o tecido mole. No caso da inserção em um cadáver, seria mais fácil proceder antes da rigidez cadavérica (rigor mortis) e posteriormente, durante a flacidez cadavérica [E_Leite_2019] [E_Teixeira_2021].

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Fig. 86 Ajuste estrutural para acondicionamento do tijolo na cavidade oral do modelo 3D.

Os dados do teste prático foram utilizados para ajustar ajustar o modelo 3D, de modo a acondicionar o tijolo na cavidade oral do indivíduo ID6 (Fig. 86).

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Fig. 87 Renderização da cena.

Os detalhes das marcas de expressão são efetuados por escultura digital, as configurações dos cabelos são ajustadas, a pigmentação da pele é configurada por pintura digital e a iluminação da cena organizada, a partir de então a geração das imagens finais é iniciada (Fig. 87).

Resultados e Discussão

Foram gerados 3 grupos de imagens:

1) Aproximação facial objetiva: Com os olhos fechados, sem pelos e cabelos e em escala de cinza (Fig. 88, Fig. 89, Fig. 90);
2) Aproximação facial artística: Com os olhos abertos, com pelos e cabelos e colorida (Fig. 91, Fig. 92, Fig. 93);
3) Aproximação facial com o tijolo inserido na cavidade oral: Sem pelos e cabelos, com tonalidade avermelhada e com leve desidratação do tecido mole (Fig. 94, Fig. 95, Fig. 96).
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Fig. 88 Face objetiva - frontal.

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Fig. 89 Face objetiva - 3/4.”

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Fig. 90 Face objetiva - perfil.”

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Fig. 91 Face artística - frontal.

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Fig. 92 Face artística - 3/4.”

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Fig. 93 Face artística - perfil.”

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Fig. 94 Face com a inserção do tijolo - 3/4.

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Fig. 95 Face com a inserção do tijolo - lateral.”

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Fig. 96 Face com a inserção do tijolo - frontal.”

Em relação a questão envolvendo vampirismo, existem duas explicações, uma simples e reforçada por exemplos [E_Minozzi_2012] e outra um tanto fantástica com escassas explanação e documentação [E_Nuzzolese_2010]. Se a segunda não parece ser aplicável, a abordagem foi ao menos criativa e explorou a plasticidade do elemento composto pelo crânio e pelo tijolo a ponto de suscitar o interesse da National Geographic, que produziu material sobre a descoberta.

Apesar de haver um grande apelo popular sobre o tema, geralmente a explicação para o acontecimento é mesmo a mais simples como o próprio autor testemunhou em outro projeto, o do “Vampiro” de Celakovice (Tchéquia), no qual um enterro com sinais de anti-vampirismo era, ao que tudo indica, parte de um cemitério onde os excluídos sociais e a configuração do corpo, que poderia denotar o simbolismo místico, também se deveu ao acaso ou ao descuido no momento do sepultamento efetuado entre os séculos XIV e XVI [E_Downey_2016].

Conclusão

O presente trabalho foi bem sucedido em aproximar a face e testar a inserção do tijolo na cavidade oral do modelo tridimenional, baseado em dados extraídos de publicações online, journals acadêmicos e teste prático.

Agradecimentos

Ao Dr. Richard Gravalos por ceder a tomografia utilizada na deformação anatômica. Ao Dr. Leandro Valendorf pelas orientações relacionadas a tanatologia forense.

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