A Aproximação Facial e a Análise Estrutural do Crânio do Homem de Piltdown - Fraude (1912)

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Cicero Moraes
* 3D Designer, Arc-Team Brazil, Sinop-MT, Brasil - Bacharel em Marketing, Dr. h. c. FATELL/FUNCAR (Brasil) e CEGECIS (México) - Membro da Mensa Brasil e da Intertel - Revisor convidado: Elsevier, Springer Nature e PLoS - Guinness World Records 2022: First 3D-printed tortoise shell.

Luca Bezzi
* Arqueólogo, Arc-Team, Cles-TN, Itália

Alessandro Bezzi
* Arqueólogo, Arc-Team, Cles-TN, Itália
Data da publicação: 01 de janeiro de 2024
ISSN: 2764-9466 (Vol. 5, nº 1, 2024)

Atenção

Este material utiliza a seguinte licença Creative Commons: Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0).

Introdução

No dia 18 de dezembro de 1912, o advogado de profissão e geólogo amador Charles Dawson, juntamente com o paleontólogo Arthur Smith Woodward, participaram de uma reunião da Geological Society de Londes, onde apresentariam uma série de achados que causaria grande impacto nos estudos da evolução humana [A_Straus_1954] [A_Dean_2015].

Segundo relatado, por volta de 1908 [A_Straus_1954] o Sr. Dawson estava caminhando por uma estrada em Piltdown Commons (Sussex, Grã Bretanha) que recentemente passara por manutenção e percebeu que haviam distribuído sobre ela cargas de pedras marrons, pouco comuns na região. Ele perguntou aos trabalhadores e descobriu, para sua surpresa, que tais cargas haviam sido extraídas de um leito de cascalho em uma fazenda próxima. Movido por sua curiosidade e intuição, foi até o local onde conversou com dois trabalhadores que faziam a escavação e inquiriu acerca da possibilidade dos mesmos terem eventualmente encontrado algum fóssil durante os trabalhos. Em face de uma negativa, solicitou a eles que, caso encontrassem algo que despertasse interesse, que guardassem. Em uma visita posterior um dos homens lhe entregou uma pequena porção de osso parietal humano “invulgarmente grosso”. Anos mais tarde, em 1911, ele recolheu entre os montes de brita lavada pela chuva, outro pedaço maior, pertencente a região frontal do crânio, incluindo uma crista superciliar esquerda. Munido dos achados, ainda no mesmo ano ele foi até o Museu Britânico (de História Natural) e apresentou-os ao Dr. Woodward, que ficou imediatamente impressionado com a importância da descoberta, de modo que decidiram empregar mão-de-obra para mais buscas entre os montes e entulhos de cascalho que abrigavam os achados. Por conta do período de chuva, deram início aos trabalhos apenas na primavera de 1912. Ao que tudo indicava, todo ou grande parte do crânio humano foi quebrado pelos trabalhadores, que jogaram fora os pedaços sem os terem notado. Ao iniciarem os trabalhos, encontraram a metade direita de uma mandíbula, que parecia ter sido quebrada na sínfise e desgastada, talvez quando estava fixada no cascalho e antes da sua completa deposição. O próprio Dr. Woodward desenterrou uma pequena porção de um osso occipital do crânio a cerca de um metro do ponto onde a mandíbula foi encontrada. Os fragmentos do crânio mostraram pouco ou nenhum sinal de rolamento ou outra abrasão, exceto pela incisão na parte posterior do parietal, provavelmente causada pela picareta do operário. Foram encontrados também restos de elefante, mastodonte, hipopótamo, castor, veado e cavalo, além de alguns eólitos. Todas as amostras estavam altamente mineralizadas com óxido de ferro, que dava a elas uma coloração marrom. Frente aos fatos apresentados, parecia provável que o crânio e a mandíbula pertenciam a uma data anterior a primeira metade do Pleistoceno. O grupo de restos humanos compreendiam a maior parte de uma caixa craniana, composta por quatro peças reconstruídas a partir de nove fragmentos e um ramo da mandíbula com os molares inferiores 1 e 2. Frank Oswald Barlow, preparador do Departamento de Geologia do Museu de História Natural fez as primeiras reconstruções de como seria o crânio do Homem de Piltdown, e a capacidade craniana inicial foi estipulada em 1070 cc. Segundo os palestrantes, o esmalte e a dentina foram igualmente desgastados pelos movimentos de mastigação, resultando em um achatamento tão marcado e regular, nunca antes observado entre os macacos, embora fosse ocasionalmente encontrado em homens inferiores. Frente a todas as características apresentadas, um crânio marcadamente humano e uma sínfise mandibular simiesca, foi proposto que que a espécie de Piltdown fosse considerada com um novo gênero da família Hominidae, a ser denominado Eoanthropus dawnsoni, em homenagem ao seu descobridor. Os especialistas que estavam presentes na condição de debatedores parecem ter, em linhas gerais, se entusiasmado com a descoberta ainda que dúvidas pairassem no ar. Segundo o zoólogo Sir Ray Lankester, embora a restauração da mandíbula tenha sido um passo muito ousado, ele considerou que era justificado. O prof. Arthur Keith, anatomista, considerou a descoberta como, de longe, a mais importante já feita na Inglaterra. Ele concordou que a reconstrução do crânio havia sido executada com grande habilidade, sendo o único ponto de restauração, sobre a qual ele não estava convencido a região do mento da mandíbula, pois se aproximou demais das características de um chimpanzé. O professor William Boyd Dawnkins, geólogo, disse concordar com os autores em relação aos restos pertencerem ao Pleistoceno. A evidência era clara de que a descoberta revelada um elo perdido entre os homens e os macacos superiores. O Dr. Wynfrid Duckworth, anatomista, concordou inteiramente com os autores quanto à importância do crânio de Piltdown e também quanto ao seu significado geral. No entanto, para cumprir completamente as expectativas, o problema da antiguidade precisa do crânio exigia uma solução, sendo assim, os anatomistas aguardariam as conclusões formadas pelos geólogos sobre a questão. O Sr. Edwin Tulley Newton, paleontologista, chamou a atenção para a condição altamente mineralizada dos espécimes, o que poderia apontar para a idade do Plioceno e não do Pleistoceno podendo ser, portanto, ainda mais antigos. Já para David Waterston, anatomista, foi muito difícil acreditar que os dois espécimes (crânio e mandíbula) pudessem vir do mesmo indivíduo [A_Dawson_1913].

Ainda que levantasse algumas dúvidas relacionadas a anatomia e a época dos achados, a apresentação foi recebida com atenção e abraçada por um seleto grupo de científicos, em parte significativa, graças à presença do Dr. Woodward, que fizera fama como paleontólogo e geólogo de vertebrados, tanto no Reino Unido, quanto no exterior, permitindo que ele fosse nomeado assistente do Museu Britânico em 1882. Ele conheceu Dawson em 1884, quando este coletava fósseis em pedreiras de arenito. Woodward, que recebera as informações sobre os achados de Piltdown, não apenas participou das escavações, mas também testemunhou o encontro da mandíbula por Dawnson. Essa parceria permitiu que um grupo de especialistas do Museu Britânico, dentre eles o já citado Dr. Frank Barlow, juntassem forças para resolver aquele quebra-cabeças anatômico e gerar as primeiras reconstruções. Após a apresentação de 1912, alguns ajustes foram feitos, de modo a criar um crânio completo que se adequasse às considerações dos especialistas consultados, como uma mandíbula mais compatível com os humanos modernos, segundo orientação do Dr. Arthur Keith. Em 1913 dois ossos nasais foram encontrados, bem como um dente canino. Tais descobertas representaram uma séria preocupação para o Dr. Keith, resultando em um recuo por parte dele, que aceitou que Piltdown era um estranho amálgama de características humanas e simiesca que ele jamais pensava ser possível [A_Woodward_1913] [A_Dean_2015]. A capacidade craniana, que inicialmente fora estimada em 1070 cc evoluiu para 1300 cc em 1915. Naquele ano foi gerada a réplica que hoje se conhece do E. dawsoni, com uma grande capacidade cerebral, ao mesmo tempo que comporta uma mandíbula mais simiesca. A relação do Dr. Keith com o crânio foi a mais inesperada possível, uma vez que nasceu com uma significativa desconfiança, evoluiu para a aceitação dos achados e teve o seu ápice quando este foi chamado pelo Dr. Woodward para a inauguração de um monumento ao Homem de Piltdown em 1938, segundo suas próprias palavras, “das várias honras que recebi, nenhuma me tocou mais profundamente”. Dawson, o descobridor do fóssil não teve muito tempo para apreciar a tremenda repercussão gerada pelos seus achados, pois viera a falecer no ano de 1916. O próprio Dr. Woodward, sempre muito grato ao grande amigo, pela honra de participar de tudo aquilo, faleceu em 1944, seis anos depois de erigir o monumento que lembraria aquele, até então, marco científico. [A_Dean_2015].

Apesar de todo o frisson causado pela descoberta, é bem verdade que, e não se esperaria algo diferente do meio científico, muitos especialistas não viam coerência nela, o que despertou uma série de desconfianças. O Dr. Waterston que participara da apresentação de 1912 foi bem franco em suas palavras quando afirmou que “ter uma mandíbula inteiramente semelhante à de um chimpanzé, exceto por um côndilo semelhante ao humano, era como ter um pé semelhante ao de um chimpanzé sobre uma coxa e uma perna essencialmente humanas”. O ilustre paleontólogo de vertebrados do Museu Americano de História Natural, William King Gregory, que havia participado de reuniões com o Dr. Woodward em 1913, já relatava (em 1914) a crescente desconfiança que surgia do meio quando escreveu que “alguns suspeitam que geologicamente eles [os achados] não são nem um pouco antigos; que podem até representar uma farsa deliberada, um crânio negro ou australiano e uma mandíbula de macaco fossilizados artificialmente e “plantados” no leito de cascalho para enganar os cientistas”. Em junho de 1914, uma grande ferramenta de osso, chamada de taco de críquete por alguns, foi encontrada cerca de 30 cm abaixo do solo em Piltdown, levantando especulações de que alguém poderia ter plantado o taco para avisar o falsificador de que ele havia sido descoberto. Em 1915 Gerrit Miller, zoólogo do Smithsonian Museum, publicou uma longa análise comparativa da mandíbula de Piltdown em relação a chimpanzés, gorilas e orangotangos, chegando a conclusão de que não existia nenhuma morfologia mista ou intermediária em qualquer região e que qualquer tentativa de de combinar a mandíbula e o crânio de Piltdown produziria um primata que diferiria fundamentalmente dos outros. Em 1949 o antropólogo físico do Museu Britânico, Kenneth Oakley, coletou 20 microamostras dos dos dentes, mandíbula e abóbada craniana de Piltdown, estabelecendo que teriam menos que 100.000 anos de idade. Se por um lado o tempo da amostra frustrava as observações iniciais que remontaria até 1.000.000 de anos atrás, por outro parecia indicar que as peças poderiam pertencer a um único indivíduo, causando ainda mais confusão. O biólogo Joseph Weiner também se envolveu nos esforços para compreender a realidade dos achados, e passou a pensar na hipótese de erro humano ou mesmo fraude, pois a remoção do côndilo mandibular e a quebra da mandíbula para remover a dentição anterior e a sínfise da linha média, pareciam tentativas claras de impedir o diagnóstico de que a mandíbula fosse semelhante à humana ou a de um macaco. Ele próprio escreveu mais tarde que “devo enfatizar que para alguém como Dawson, com 15-20 anos de interesse em arqueologia e evolução, um homem de indubitavelmente grande inteligência, frequentemente em contato com paleontólogos, que conhecia bem a Coleção Hunteriana do Royal College of Surgeons, e que tinha em sua posse um modelo da mandíbula de Heidelberg, entre outras coisas, não seria de forma alguma difícil adquirir o conhecimento [anatômico] necessário”. Entre 1953 e 1955, Weiner, Oakley e Le Gros Clark identificaram as técnicas de coloração utilizadas para dar aspecto artificialmente mineralizado às descobertas de Piltdown. Além disso, soube-se que vários paleolitos eram, na verdade, pederneiras neolíticas manchadas, e o material faunístico foi derivado de muitos outros locais [A_Dean_2015] [A_De_Groote_2016].

No ano de 2016 um amplo estudo sobre o Homem de Piltdown foi publicado, abordando uma série de novas análises e revelando algumas novidades sobre o caso. Não foi possível extrair evidências taxonômicas baseadas em medidas mandibulares, uma vez que o espécime de Pitdown se mostrou pequeno para um orangotango. No entanto, a análise dos molares mostrou mais compatibilidade com o gênero Pongo. O canino de Piltdown é parecido com os de dois orangotangos subadultos. A análise filogenética revelou que o canino de Pitdown I e o molar de Pitdown II (um espécime que veio à tona depois da morte de Dawson) pertenciam a um orangotango de Bornéu (Pongo pygmaeus), que provavelmente viveu ao oeste da ilha, mais precisamente no sudoeste de Sarawak. Os pesquisadores identificaram a presença de massa restauradora nos alvéolos mandibulares e uma série de lesões causadas durante o processo de “ajuste” da estrutura para o fim desejado pelo do falsificador. Em relação a abóbada, foram utilizados ossos de dois ou três humanos, possivelmente medievais [A_De_Groote_2016].

Até hoje não se sabe ao certo o que motivou tal falsificação, especula-se que Charles Dawson sonhava se tornar Fellow da Royal Society, e vendo que seus esforços anteriores não surtiram efeito, pode ter utilizado os seus conhecimentos para falsificar o “fóssil” do Homem de Piltdown [A_Dean_2015] [A_De_Groote_2016]. O fato é que tanto Dawson quanto Woodward, os dois principais envolvidos, colheram em vida a notoriedade que a descoberta os trouxe. Apenas 40 anos depois da apresentação das descobertas é que uma refutação formal acabou acontedendo, a conclusão, segundo Weiner, Oakley e Le Gros Clark (1953) foi a de que “os ilustres paleontólogos e arqueólogos que participaram das escavações em Piltdown foram vítimas de uma fraude muito elaborada e cuidadosamente preparada” que foi “tão extraordinariamente hábil” e que “parece ter sido tão inteiramente inescrupuloso e inexplicável, a ponto de não encontrar paralelo na história da descoberta paleontológica” [A_Straus_1954].

Materiais e Métodos

A reconstrução facial forense (RFF) ou aproximação facial forense (AFF) [A_Stephan_2015], é uma técnica auxiliar de reconhecimento que reconstrói/aproxima a face de um indivíduo a partir do seu crânio e é utilizada quando há escassa informação para a identificação de um indivíduo [A_Pereira_2017]. Nota-se que a técnica não se trata de identificação, como aquelas oferecidas por DNA ou análise comparativa de arcos dentários, mas sim de reconhecimento que pode levar à posterior identificação.

Por se tratar de um suposto animal extinto, o presente trabalho valeu-se apenas da abordagem conhecida como deformação anatômica, a ser explanada a frente. Com a exceção do uso dos marcadores de espessura de tecido mole e traçado do perfil da face, os autores seguiram a mesma abordagem apresentada em Abdullah et al. 2022 [A_Abdullah_2022] e Moraes et al. 2023 [A_Moraes_2023].

O processo de modelagem foi efetuado no software Blender 3D, rodando o add-on OrtogOnBlender (http://www.ciceromoraes.com.br/doc/pt_br/OrtogOnBlender/index.html) e seu submódulo ForensicOnBlender. O programa e o add-on são gratuitos, de código aberto e multiplataforma, de modo que podem rodar no Windows (>=10), no MacOS (>=BigSur) e no Linux (=Ubuntu 20.04).

No caso do presente trabalho, foi utilizado um computador desktop com as seguintes características:

* Processador Intel Core I9 9900K 3.6 GHZ/16M;
* 64 GB de memória RAM;
* GPU GeForce 8 GB GDDR6 256-bit RTX 2070;
* Placa mãe Gigabyte 1151 Z390;
* SSD SATA III 960 GB 2.5”;
* SSD SATA III 480 GB 2.5”;
* Water Cooler Masterliquid 240V;
* Linux 3DCS (https://github.com/cogitas3d/Linux3DCS), baseado no Ubuntu 20.04.

O volume do crânio Piltdown I, utilizado como base para a aproximação facial foi produto de duas peças, uma réplica física pertencente a dois dos autores (L.B e A.B.) e uma réplica digital disponível para download, gentilemente cedida (sob licença Creative Commons) pelo perfil The Amelia no portal de modelos tridimensionais interativos Skechfab (https://skfb.ly/6TxJS). Os crânios foram alinhados ao plano horizontal de frankfurt, para simular um adulto humano em pé, observando o horizonte. As tomografias de dois doadores virtuais são importadas de modo a proceder com a técnica de deformação anatômica, inicialmente um Homo sapiens e posteriormente um Pan troglodytes. Tal técnica foi amplamente utilizada desde o ano de 2013 e passou por testes de avaliação que consistiam na conversão de uma espécie em outra, como a deformação de um Pan troglodytes para um Gorilla gorilla e vice-e-versa, sendo bem sucedida na abordagem [A_Bezzi_2015].

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Fig. 1 Deformação anatômica utilizando as tomografias de um Homo sapiens e um Pan troglodytes.

Por apresentar características de espécies diferentes na estrutura do seu crânio, a deformação anatômica do Homem de Piltdown foi feita em três etapas: 1) O ajuste do crânio, do tecido mole e endocrânio de um humano à estrutura de Piltdown, 2) O ajuste do crânio, do tecido mole e endocrânio de um Pan troglodytes à estrutura de Piltdown (Fig. 1, A, B, C) e 3) A interpolação das duas deformações em apenas uma contendo elementos mistos (Fig. 1, D). A técnica de deformação mista é utilizada há quase uma década pela equipe que compôs este trabalho e um exemplo da sua aplicação pode ser observado em um vídeo no YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=zNAGJHC4pPI). Naquela oportunidade a deformação era efetuada com o modificador Lattice do Blender, atualmente ela é efetuada no modo de edição com o Proportional ativo (https://youtu.be/xig5_EcIFWA). Uma vez que a deformação está completa, a malha facial de outra aproximação facial é aproveitada e ajustada sobre a face interpolada (Fig. 1, D), seguindo a abordagem descrita em Abdullah et al. 2022 [A_Abdullah_2022] e Moraes 2023 [A_Moraes_2023].

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Fig. 2 Etapas finais da aproximação facial digital.

Para complementar os elementos de projeção e posteriormente a deformação anatômica, foram distribuídos alguns pontos anatômicos no crânio, para servirem como referência a linhas de projeção de esturturas ósses e do tecido mole baseadas em tomografias de indivíduos vivos de ancestralidades diferentes [A_Moraes_2022]. Percebe-se que a distância frontomalar orbital que resultou 118.5 mm, está mais de dois desvios padrão acima da média geral do H. sapiens que é de 96.6 mm ± 4.5 (https://bit.ly/3NRw2KW). Isso causa uma distorção na projeção das linhas baseadas na proporção (Fig. 2, A, B em azul), no entanto, a mandíbula é menor que a média, uma vez que a linha da média, onde deveria ser o mento, está significativamente abaixo de tal ponto anatômico (Fig. 2, A, B em verde). Cursiosamente a projeção das asas nasais, dos lábios, dos olhos e das orelhas se enquadraram ou na média ou na proporção esperada (Fig. 2, B). Seguindo com a aproximação, a malha facial recebe ajustes estruturais via escultura digital com auxílio de uma mesa digitalizadora (Wacom Bamboo CTL-470), mas que poderia ser efetuada com um mouse sem grandes dificuldades (Fig. 2, B). Em seguida a configuração anterior da pelagem é ajustada de modo a se compatibilizar com um misto de distribuição superficial presente no Pan troglodytes e no Homo sapiens (Fig. 2, C). Finalmente a textura e material da superfície também é reajustado e a iluminação digital composta de modo a evidenciar os detalhes estruturais da face (Fig. 2, D).

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Fig. 3 Tomografias e malhas 3D de orangotangos, além da réplica do endocrânio de Piltdown.

Algumas tomogragias de Pan Toglodytes, Gorilla gorilla e outros primatas estavam à disposição dos pesquisadores, mas o atual estudo, além de comparar com os já citados, focou os seus esforços no gênero Pongo, mais precisamente no Pongo pygmaeus, seguindo a abordagem de De Groote et al. 2016 [A_De_Groote_2016]. Foram utilizadas tomografias advindas do aparentemente extinto projeto de tomografias online do Instituto de Pesquisas de Primatas em Kyoto (KUPRI) (http://www.pri.kyoto-u.ac.jp/dmm/WebGallery/dicom/researcherTop.html) (Fig. 3, A), modelos de P. pygmaeus disponíveis para download no projeto 3D Scanner Frontier do Smithsonian (https://3d.si.edu/) (Fig. 3, B) e o banco de tomografias Digimorph (https://digimorph.org/index.phtml), onde foi baixado um vídeo com slices convertidos em um arquivo DICOM no OrtogOnBlender [A_Moraes_2021] (Fig. 3, C). Foi baixado e importado, um arquivo do endocrânio de Piltdown I (Fig. 3, D) que estava disponível para download no perfil do RLA Archaeology no Sketchfab, sob licença Creative Commons (https://skfb.ly/6YznE), fornecendo assim a base de comparação para as estruturas geradas a partir da deformação anatômica, abordadas nos Resultados e Discussão.

Resultados e Discussão

Aproximação Facial Digital

Foram trabalhadas duas abordagens relacionadas a aproximação facial, uma mais objetiva e outra mais artística. A abordagem objetiva consistiu em um busto dotado dos elementos intimamente ligados aos aspectos anatômicos da aproximação e uma vez que a etapa inicial do processo foi composta apenas por dados colhidos de tomografias, isso possibilitou gerar uma face anatomicamente coerente, em escala de cinza, pois não é possível saber com exatidão a coloração da pele, também sem pelos e cabelos, posto que não há informações acerca da configuração destas estruturas (Fig. 4, Fig. 5, Fig. 6, Fig. 7). A abordagem mais artística consiste em imagens com a coloração da pele e com pêlos (Fig. 8, Fig. 9, Fig. 10, Fig. 11). Ainda que contenha elementos especulativos acerca da aparência do indivíduo, por se tratar de um trabalho que será apresentado ao público geral, fornece os elementos necessários para que passe um aspecto vivificado do hominídeo, muito difícil de se viabilizar apenas com a exposição do crânio e pobre de apelo visual na imagem objetiva em escala de cinza.

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Fig. 4 Face objetiva - 3/4.

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Fig. 5 Face objetiva - frontal.

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Fig. 6 Face objetiva - 3/4 superior.

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Fig. 7 Face objetiva - lateral.

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Fig. 8 Face artística - 3/4.

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Fig. 9 Face artística - frontal.

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Fig. 10 Face artística - 3/4 superior.

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Fig. 11 Face artística - lateral.

Comparação Antômica

Em relação à comparação anatômica, as peças foram alinhadas ao crânio Piltdown I (Fig. 12, A), mas quase todas as mandíbulas dos orangotangos (Pongo pygmaeus) ficaram maiores, principalmente as dos espécimes masculinos. Uma mandíbula que se assemelhou significativamente foi a proveniente da coleção digital do Museu Smithsoniano, nomeada Pongo pygmaeus: mandible USNM 153822 (https://www.si.edu/es/object/3d/pongo-pygmaeus-mandible:5ae7ea76-3a35-4541-8714-8714322b90dc), trata-se de uma peça originária de Bornéu, Indonésia [A_Smithsonian_2005]. Curiosamente coletada no dia 2 de agosto de 1908, aproximadamente no mesmo ano que Dawson, supostamente, descobriu as pedras de cor avermelhada na estrada de Piltdown [A_Straus_1954].

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Fig. 12 Etapas da comparação anatômica.

A mandíbula do orangotango fêmea se assemelhou significativamente ao remanescente encontrado por Dawson e equipe em 1912 (Fig. 12, B), sendo necessária apenas uma rotação de 8.09 graus para que se adequasse a forma da reconstrução (Fig. 12, C). Analisando as duas mandíbulas do orgango, percebe-se que a esturtura da reconstrução foi “aberta” para se encaixar ao crânio (maxila e côndilo) (Fig. 12, D). O gênero espécie, Pongo pygmaeus corrobora com a publicação de De Groote et al. 2016 [A_De_Groote_2016], ao passo que resolve, aparentemente a questão da não compatibilidade estrutural, uma vez que as mandíbulas das fêmeas da espécie se mostraram não apenas mais parecidas, mas o malha se compatibilizou de modo visualmente e volumetricamente significativo. Outra coincidência norteia Pitdown e o Museu Smithsoniano, uma vez que Gerrit Miller, que era curado do Departamento de Zoologia dos Vertebrados do Museu Nacional de História Natural foi um dos especialistas que indicou que o crânio e a mandíbula não pertenceria a um mesmo animal e para chegar a essa conclusão estudou 22 chipanzés, 23 gorillas e 75 orangotangos pertencentes ao acervo da instituição [A_Miller_1915]. Haveria a possibilidade de, eventualmente, um destes espécimes ter sido o USNM 153822?

Endocrânio e Circunferência da Cabeça

Existe uma série de dados sobre qual seria a capacidade craniana de Piltdown I, a primeira foi de 1070 cc [A_Dawson_1913], posteriormente 1300 cc [A_Dean_2015] e finalmente 1400 cc [A_Straus_1954]. A título de comparação, o modelo nomeado Piltdown Man endocranium (433rp30) (https://skfb.ly/6YznE) foi baixado, alinhado à réplica e o volume calculado, resuntando em 1311 cc. O endocrânio resultante da deformação anatômica do doador virtual H. sapiens resultou em 1341 cc e o resultante da deformação anatômica de um doador virtual P. troglodytes resultou em 1379 cc, corroborando com os levantamentos finais documentados e o modelo disponível online. Já a circunferência da cabeça resultou em 58.03 cm.

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Fig. 13 Gráfico bidimensional do volume do endocrânio (horizontal) e da circunferência da cabeça (vertical), representando o grupo de humanos e outros animais..

Em relação a capacidade craniana e a circunferência da cabeça, Piltdown I está dentro do grupo dos humanos modernos (Fig. 13). Quando o endocrânio é convertido em volume cerebral com o fator -9,81% [A_Moraes_2023b], resulta em 1182 cm³, que o coloca tanto dentro do desvio padrão masculino (1234±98), quanto do feminino (1116±90) [A_Ritchie_2018]. Em relação à circunferência da cabeça, o valor se aproxima mais da média masculina (56.2±2.4) do que da feminina (54.3±2.3) [A_Costa_2022]. No entanto, mesmo em face da circunferência da cabeça, a mandíbula de um orangotango do sexo feminino, juntamente com características gráceis do crânio (quando comparada com outros hominídeos e mesmo os humanos arcaicos), não excluem a possibilidade da réplica poder ser, na verdade, a Mulher de Piltdown.

Considerações Finais

Quando se leva em consideração a tecnologia e o conhecimento atual é muito difícil entender o motivo de tantos científicos terem aceito uma abordagem aparentemente simplória como o crânio de Piltdown, no entanto, há de se compreender que, por exemplo Charles Darwin havia lançado a sua obra prima A Origem das Espécies, em 24 de novembro de 1859, ou seja, apenas 53 anos antes da apresentação da “descoberta” de Dawson. Além disso, até então poucos fósseis relacionados a evolução humana haviam sido encontrados, como os crânios Cro-Magnon na França (1868), espécimes de neandertais na Bélgica (1886), o H. erectus em Java (1891) e o H. heidelbergensis na Alemanha (1908) [A_Dorey_2019]. Ainda que o conceito de journal científico tenha coincidentemente nascido no seio da Royal Society em 1665, o mesmo não contava com o processo de revisão por pares, que se popularizou apenas na segunda metade do século XX [A_Tobias_2019] [A_Spier_2002]. Entretanto, mesmo hoje o processo de revisão por pares não garante que um ou outro estudo, publicado em grandes e importantes journals não se revelem embustes, vide os casos de Jan Hendrik Schön [A_Nature_2003] [A_Service_2019] [A_Vogel_2011], Woo-suk Hwang [A_Cyranoski_2006] [A_Kennedy_2006], Paolo Macchiarini [A_The_Lancet_2023] e finalmente o caso da Theranos, uma empresa que, se por um lado não publicou nada em grandes journals, tinha um quadro de especialistas com alto conhecimento acadêmico, mas mesmo assim protagonizou um dos maiores escândalos da história da medicina moderna [A_Carreyrou_2019].

O que aparentemente houve no caso de Piltdown foi uma tempestade perfeita, onde os conhecimentos técnicos do falsificador (ou falsificadores) exploraram as demandas acadêmicas da época se valendo das limitações técnicas da época.

Conclusão

O presente artigo demonstrou que a a utilização de ferramentas gratuitas e livres, além de um amplo acervo disponível na internet, permite a pesquisadores independentes estudarem a anatomia de casos reconhecidamente fraudulentos, de modo a cooperarem com a corroboração de estudos publicados e o incremento de novas informações.

Além disso, evidenciou o potencial da mandíbula de um orangotango fêmea ter sido utilizado como base no processo de falsificação do fóssil. Unindo isso aos aspectos delicados do crânio, apresenta a possibilidade de se tratar, na verdade, não de um homem, mas de uma Mulher de Piltdown.

Agradecimentos

Ao Dr. Richard Gravalos pela tomografia do doador virtual, ao Digital Morphology Museum (KUPRI), ao Smithsonian, ao Digimorph, ao RLA Archaeology e ao The Amelia pelos recursos relacionados a anatomia 3D utilizada neste estudos, graças a todos o trabalho foi viabilizado e publicado.

Referências Bibliográficas

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Abdullah, J. Y., Moraes, C., Saidin, M., Rajion, Z. A., Hadi, H., Shahidan, S., & Abdullah, J. M. (2022). Forensic Facial Approximation of 5000-Year-Old Female Skull from Shell Midden in Guar Kepah, Malaysia. In Applied Sciences (Vol. 12, Issue 15, p. 7871). MDPI AG. https://doi.org/10.3390/app12157871

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[A_Carreyrou_2019]

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