A Aproximação Facial Forense do Crânio Mladeč 1¶
The Forensic Facial Approximation to the Skull Mladeč 1Cicero Moraes
Resumo¶
O presente capítulo apresenta o trabalho de aproximação facial forense do fóssil Mladeč 1, um dos mais antigos da Europa, com 31.000 anos antes do presente (AP). Será abordado desde a digitalização do crânio por fotogrametria e redimensionamento indireto, até a utilização de um conjunto de técnicas que mesclam abordagens clássicas com dados estatísticos e de adaptação anatômica de indivíduos vivos, de modo a minimizar os elementos subjetivos das metodologias mais antigas. Além disso, o volume do endocrânio foi levantado e comparado com estudos anteriores. Assim que o trabalho se encontrava quase finalizado, novos dados foram descobertos, o que permitiu enriquecer ainda mais os resultados finais, fomentando uma discussão acerca da precisão de técnicas indiretas de fotogrametria, redimensionamento e volumetria do endocrânio.
Abstract¶
This chapter presents the forensic facial approximation work of the Mladeč 1 fossil, one of the oldest in Europe, dating back 31,000 years before the present (BP). It will be approached from the digitalization of the skull by photogrammetry and indirect resizing, to the use of a set of techniques that mix classic approaches with statistical data and anatomical adaptation of living individuals, in order to minimize the subjective elements of the older methodologies. In addition, the volume of the endocranium was calculated and compared with previous studies. As soon as the work was almost finished, new data were discovered, which allowed the authors to further enrich the final results, fostering a discussion about the precision of indirect techniques of photogrammetry, resizing and volumetry of the endocranium.
A full translated online version of this article can be accessed at this link: https://bit.ly/3swgMKZ
Atenção
Este material utiliza a seguinte licença Creative Commons: Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0).
Introdução¶
Em 1881 o arqueólogo austro-húngaro Josef Szombathy (1853-1943) descobriu um crânio na Caverna Principal, em um sítio arqueológico próximo a cidade de Mladeč, República Tcheca. Em um primeiro momento pensava-se que o crânio era de um homem adulto, mas estudos posteriores, que comparavam as características de outros fósseis também encontrados no local, revelaram que era na verdade de uma mulher, falecida por volta de 17 anos de idade [A1], há 31.000 anos atrás, configurando o fóssil como um dos mais antigos de Homo sapiens encontrados na Europa [A2].
No começo e no final da década de 1930 foram efetuadas duas reconstruções faciais forenses [A3], ambas quando ainda se acreditava que o crânio pertenceu a um indivíduo do sexo masculino. Tais aproximações carecem de documentação, o que dificulta a compreensão das técnicas aplicadas, seja na reconstrução completa do crânio que não dispõe da mandíbula, seja dos tecidos moles, que geralmente são modelados tendo tabelas de espessura de tecido mole como base.
No ano de 2021 o Museu de História Natural de Viena disponibilizou uma versão interativa e online do crânio Mladeč 1, sob licença Creative Commons (CC BY-NC 4.0l). Tal modelo inspirou a criação do projeto de aproximação facial forense apresentado neste capítulo, igualmente sob licença Creative Commons (CC BY 4.0).
Materiais e Métodos¶
Configuração do Microcomputador e do Sistema Operacional¶
Todo o trabalho foi efetuado em um microcomputador com as seguintes características:
Processador Intel Core I9 9900K 3.6 GHZ/16M;
64 GB de memória RAM;
GPU GeForce 8 GB GDDR6 256-bit RTX 2070;
Placa mãe Gigabyte 1151 Z390;
SSD SATA III 960 GB 2.5”;
SSD SATA III 480 GB 2.5”;
Water Cooler Masterliquid 240V.
O sistema operacional utilizado foi o Linux 3DCS, que é baseado no Ubuntu 20.04 LTS.
Captura de Tela¶
Inicialmente o link https://skfb.ly/o7xwQ foi aberto no navegador Chrome, a textura desabilitada e o wireframe habilitado, de modo a mostrar as arestas das faces que compõem o modelo do fóssil Mladeč 1. Tal medida é necessária para o processo de fotogrametria, que será descrito posteriormente. Uma vez que as configurações necessárias foram efetuadas, a página foi maximizada e a tela capturada em vídeo com o software SimpleScreenRecorder (o mesmo pode ser feito com o software livre e multiplataforma OBS Studio). O modelo interativo foi orbitado de modo a capturar a maior área possível da superfície e resultou em um arquivo de vídeo .AVI de 1m32s, com 384 MB e qualidade média, respeitando a configuração default do software. O vídeo pode ser visualizado de modo online no YouTube.
Digitalização do Crânio por Fotogrametria¶
O OrtogOnBlender [A4] é um add-on escrito em Python, que roda no Blender 3D, incrementando-o com comandos não disponíveis na versão nativa, como a digitalização 3D a partir de fotos (fotogrametria), a reconstrução 3D de tomografias computadorizadas (DICOM), o cálculo booleano em estruturas complexas e outros. Dentre os comandos disponíveis no add-on, está aquele que converte vídeos em arquivos de imagem, o Video to Images [A5] [A6].
Ao se proceder com o comando foram gerados 2753 imagem em FullHD (1920 x 1080 px), das quais foi separada uma faixa de 83 capturas, com um retângulo de seleção dos thumbnails junto ao gerenciador de arquivos (Fig. 1, A). Tais imagens foram enviadas a um diretório próprio e serviram de base para a fotogrametria efetuada na seção Photogrammetry, com o modo default, ou seja OpenMVG+OpenMVS, com o Decrease picture size desativado e o D Factor e o Smooth Factor, ambos com o valor de 4. Esses cuidados são necessários para que a digitalização 3D mantenha o máximo de detalhes possível da superfície. Das 83 fotos foram aproveitadas 63 pelo sistema, o suficiente para reconstruir a parte de interesse para a aproximação facial. O processo levou um tempo total de 4 minutos e 27 segundos e gerou um modelo correspondente ao crânio Mladeč 1, com a textura do wireframe, utilizada para facilitar os cálculos dos algoritmos de fotogrametria (Fig. 1, B). A fotogrametria sem um marcador ArUco [A7] não fornece dados de escala do objeto, de modo que, para colocar o crânio em seu tamanho real recorreu-se a fotos com referência de escala presente em vários capítulos do livro Early Modern Humans at the Moravian Gate [A8]. Uma vez que as imagens têm deformação de perspectiva e a referência de escala (ortográfica) não tem, optou-se por utilizar o volume geral das vistas para o redimensionamento à escala, o que pode imprimir ao modelo uma pequena margem de erro em relação ao crânio real. Não sendo necessária a textura do wireframe, a mesma foi desabilitada e o crânio alinhado no plano de Frankfurt (Fig. 1, C) de modo a proceder com a reconstrução das regiões faltantes.
Complementação do Crânio¶
O fóssil Mladeč 1 foi encontrado sem a mandíbula e com uma série de dentes faltantes. Para que a aproximação facial possa ser efetuada, é necessário que o crânio esteja completo e em face de tal situação, foi necessário recorrer a uma reconstrução das partes ausentes na estrutura.
Antes de iniciar os trabalhos de recuperação das regiões faltantes algumas medidas foram feitas no crânio a ser aproximado, de modo a localizar doadores virtuais que sirvam não apenas para a recuperação, mas para o posterior processo de aproximação facial. Foram efetuadas as mensurações dos espaços entre os frontomalares orbitais (fmo-fmo), entre a grabela e o násio (g-n) e entre o rínio e a borda lateral mais extrema da órbita (rhi-ec). Esses dados são plotados em um gráfico de clusters populacionais [A9], indicando afinidades com tomografias que possam estar no acervo de doadores virtuais dos autores. No caso do crânio Mladeč 1, houve maior afinidade com clusters de asiáticos (MALAYSIAN, VIETNAMESE e AMERICAN ARCHAEO), brasileiros gerais (BRAZILIAN) e brasileiros de ancestralidade marcadamente africana (BRAZILIAN/AFRI). Tal posicionamento (Fig. 2) não é uma evidência definitiva de que se trata de um indivíduo daqueles grupos ancestrais, mas que há uma compatibilidade da região dos olhos e do nariz com indivíduos dos clusters.
O OrtogOnBlender conta com o submódulo ForensicOnBlender [A10], criado para facilitar o trabalho de aproximação facial forense. Dentre os comandos disponíveis há um que permite o traçado de uma série de projeções, tanto de estruturas do tecido mole a ser aproximado, quanto de regiões do crânio, tais informações são resultantes de medidas efetuadas uma série de tomografias de indivíduos vivos com um n variando de 74 a 110 tomografias de diferentes grupos populacionais [A11] [A12] [A13]. A se informar uma série de pontos anatômicos do crânio, seja completo ou não, e ativar o comando final, disponível na seção Projections (Exp.), um conjunto de linhas são projetadas em vários eixos, fornecendo dados de médias e proporções de estruturas como o tamanho horizontal da boca, a distância entre as asas nasais, a posição nos três eixos dos globos oculares, os limites frontais dos gônios, a posição dos incisivos e do mento, dentre outras tantas. Graças às linhas que indicam os limites da mandíbula, foi possível reconstruir as arcadas superior e inferior, bem como a mandíbula completa. A projeção dos alvéolos dos dentes faltantes e a compatibilidade estrutural com a doadora virtual [A14] permitiu uma adaptação harmoniosa e dentro das médias e proporções esperadas, respeitando o desvio padrão de cada um (Fig. 3).
Aproximação Facial Forense¶
A reconstrução facial forense (RFF) é uma técnica auxiliar de reconhecimento, utilizada quando há escassa informação para a identificação de um indivíduo [A15]. Nota-se que a técnica não se trata de identificação, como aquelas oferecidas por DNA ou compatibilidade de arcadas dentárias, mas de reconhecimento que pode levar à posterior identificação.
Ao longo de sua história a RFF tem recebido uma série de críticas, principalmente pela clássica dificuldade de definir o que é arte e o que é abordagem científica ao se trabalhar num rosto a ser “revivido”. O Dr. Carl N. Stephan fez importantes contribuições à crítica da metodologia ao apontar uma série de problemas que envolvem o seu escopo [A16], bem como buscou imprimir uma objetividade maior às projeções das estruturas anatômicas como a largura da boca [A17], a posição dos globos oculares [A18], a projeção do nariz [A19] e outros. Ele também esclareceu a diferença entre reconstrução facial forense (RFF) e aproximação facial forense (AFF) [A20], indicando que a segunda se apoia em elementos mais objetivos para a modelagem da face, fruto de um aprimoramento contínuo e fundamentado em pesquisas efetuadas em estruturas reais da anatomia.
O presente trabalho utiliza o mesmo passo-a-passo abordado em Abdullah et al. (2022) [A21], iniciado com a complementação das regiões faltantes do crânio, seguindo com a projeção do perfil e estruturas da face a partir de dados estatísticos, gerando o volume do rosto com o auxílio da técnica de deformação anatômica e o acabamento com o detalhamento da face, configuração dos cabelos e geração das imagens finais.
Projeção da Face Básica e Volume do Endocrânio¶
O crânio reconstruído completamente já contava com algumas linhas delimitadoras de estruturas anatômicas, dentre elas a do posicionamento dos globos oculares nos eixos X, Y e Z (Fig. 4, A). Uma série de marcadores de espessura de tecido mole foi distribuída ao longo do crânio, baseada em um indivíduo do sexo feminino, mais próximo de 17 anos e com índice de massa corporal (IMC) médio [A22] (Fig. 4, B). O traçado lateral do nariz seguiu uma abordagem fundamentada em levantamentos estatísticos efetuados em tomografias de indivíduos vivos [A23] [A12] [A13] (Fig. 4, C). Tal abordagem conta com tutoriais em texto e vídeo, disponibilizados abertamente de modo online. A projeção do perfil do rosto ajuda muito na aproximação, mas ela representa apenas uma parte plana bidimensional de um rosto complexo, lembrando uma fatia de uma complexa tomografia, geralmente composta por uma matriz de 512x512x512, ou seja, a traçado do perfil corresponde a apenas uma de um total de 512 fatias. Para auxiliar a aproximação estão presentes as projeções bidimensionais do tamanho da boca, olhos e afins. Trata-se das linhas abordadas anteriormente e que também serviram ao propósito da reconstrução das partes faltantes do crânio. Os marcadores de espessura de tecido mole ajudam enormemente a indicar os limites da pele, mas cobrem apenas alguns pontos e não informam suficientemente acerca da complexidade da superfície da face. Uma forma de interpolar todas essas informações com elementos coerentes da anatomia humana é justamente utilizar tomografias de indivíduos reais e deformá-las sobre as projeções anteriormente comentadas, utilizando a deformação anatômica. O conceito é muito simples, basta reconstruir o crânio e o tecido mole [A24] da tomografia de um doador virtual mais próximo possível dentro do cluster populacional abordado anteriormente [A9]. Em seguida fazer a deformação no crânio, mas com influência de movimentação no tecido mole, o que pode ser efetuado com um modificador Lattice ou por movimentação de vértices com o Proportional edit ativado. Ao se equiparar o crânio do doador com o crânio a ser aproximado, o tecido mole se compatibiliza com o indivíduo do crânio cuja face será aproximada. Tal abordagem funciona tanto em humanos [A25], como em outros animais [A26], e neste trabalho foi efetuada com um indivíduo do sexo feminino e outro do sexo masculino, frente a ambiguidade histórica causada pela forma do crânio Mladeč 1. No entanto, o tecido mole deformado dos dois doadores resultou em faces muito semelhantes, principalmente na visão de perfil (Fig. 4, D, E, F). Uma característica da deformação facial é também o auxílio na correção das projeções estatísticas, umas vez que se trata de anatomia real, a forma é mais harmoniosa e mais coerente do que médias populacionais e traçados manuais feitos sobre os limitadores (projeções e marcadores de espessura). No caso da aproximação aqui apresentada, a deformação anatômica indicou que os globos oculares precisavam recuar um pouco no eixo Y (Fig. 4, G, H), mantendo-se dentro do desvio padrão aferido nos estudos. Também na região do queixo e logo acima dele, a linha da deformação resultou em um aspecto mais harmonioso do que o desenho inicial, traçado sobre os marcadores de espessura de tecido mole (Fig. 4, I, J). Ali também o deslocamento respeitou o desvio padrão dos marcadores. Apesar de gerar um perfil muito semelhante e frontalmente também tender majoritariamente à compatibilidade, o tecido mole do indivíduo do sexo masculino contava com um IMC maior do que aquele do sexo feminino, o que se tornou evidente na região do pescoço e próximo aos gônios (Fig. 4, F, K). Quando observa-se apenas a malha do indivíduo do sexo feminino, atesta-se a compatibilidade dos marcadores de espessura de tecido mole em quase todos os pontos (Fig. 4, L, M), exceto no mid-philtrum, mas essa discrepância já havia sido identificada em um dos estudos da projeção nasal. Um outro aspecto interessante da deformação anatômica é que se torna possível projetar regiões não disponíveis em modelos externos, como o crânio advindo de fotogrametria, que digitaliza apenas a superfície externa. A tomografia deformada mantém as estruturas internas dos ossos do crânio e ao se gerar um negativo, pode-se extrair o endocrânio (Fig. 4, N) e levantar o seu volume. Uma vez que todos os cuidados sejam tomados, para que os normals das faces do endocrânio apontem para fora, o volume pode ser extraído dentro do Blender, utilizando-se as ferramentas de impressão 3D. O levantamento informou um volume de 1342 ml, o que se mostrou compatível com estudo efetuado com crânios de humanos atuais, com média de 1328 (± 164 ml) [A27]. Ao se comparar com os resultados obtidos por Prossinger & Teschler-Nicola (2006) [A28], que mensuraram o crânio Mladeč 1 e chegaram a um volume de 1575 cm, a diferença volumétrica é de 233 ml, ou 14,79%. Há de se levar em conta dois fatores, um, que o crânio do doador virtual trata-se de uma estrutura completa e saudável, com a espessura média dos ossos maior do que a média do crânio Mladeč 1. O outro fator já foi abordado anteriormente, acerca da margem de erro do redimensionamento do crânio, feito a partir de imagens e o problema do cruzamento de referências ortográficas e fotografias com deformação de perspectiva.
Finalização da Aproximação Facial¶
A face proveniente da tomografia computadorizada apresenta uma superfície composta por milhares de faces de 3 lados, o que dificulta o trabalho do acabamento. Além disso, o modelo pode conter defeitos na superfície, provenientes de algum artefato metálico, como restauração nos dentes ou placas cirúrgicas. Para evitar esse problemas, uma face de aproximação forense anterior é aproveitada, de modo a economizar tempo e esforço.
Neste caso a face da Eva de Naharon, uma aproximação efetuada no ano de 2018 foi importada e deformada até que se adequasse a estrutura desejada (Fig. 5, A). A escultura digital é efetuada de modo a refinar os detalhes da superfície, respeitando os parâmetros das projeções disponíveis (Fig. 5, B, C). A pigmentação, ou seja, a textura e os shaders são adequados às características da aproximação, sem a necessidade de iniciar uma nova configuração (Fig. 5, D). Por fim os cabelos também foram reconfigurados (Fig. 5, E), faltando apenas a geração das imagens finais.
Resultados e Discussão¶
Foram geradas duas versões da aproximação facial, uma sem cabelos e sem pelos, com os olhos fechados e com imagens em escala de cinza e outra com cabelos e pêlos, com os olhos abertos e colorida.
A primeira versão buscou apresentar uma abordagem mais objetiva, focando no volume advindo das projeções e deformação anatômica (Fig. 6). Trata-se de um resultado mais científico e sem tanto apelo visual.
Aviso
A imagem da aproximação a ser apresentada a abaixo, pode sofrer alterações com a evolução das pesquisas do crânio!
A segunda versão é mais subjetiva e artística, uma vez que conta com detalhes adicionais, como cor, cabelos e pêlos faciais (sobrancelhas e cílios), imprime-se expressividade à imagem, bem como mais apelo junto ao público geral (Fig. 7).
Logo, a imagem simples ilustra uma abordagem mais científica e a composta, uma abordagem mais artística. A primeira oferece uma volumetria fundamentada em dados estatísticos e na anatomia real e a segunda cria uma símbolo popular, que funciona como chamariz para que eventuais interessados criem uma identificação empática com o indivíduo e possa buscar mais informações, se inteirar acerca das pesquisas científicas do fóssil, bem como a sua longa história na arqueologia. As duas imagens apresentam aspectos andrógenos, devido às características do crânio e dependendo do ponto de vista pode parecer um homem jovem mais delicado ou uma mulher jovem mais robusta.
Dados Posteriores a Aproximação Facial¶
Por conta de dois fatores, os autores ignoraram que o crânio Mladeč 1 oferecia a opção de download do modelo. Um deles é o escasso número de instituições que permitem que seu acervo seja baixado e isso é tão incomum que ao observar o modelo e, frente a satisfação de tê-lo disponível, os autores se adiantaram na digitalização sem ler esse detalhe na descrição, posto que as preocupações iniciais eram: a) ter o modelo disponível para visualização e b) a licença do modelo permitir que o mesmo fosse utilizado para um projeto livre. O segundo fator é a praticidade da metodologia, pois, em poucas horas a digitalização do crânio já estava efetuada, bem como a reconstrução das regiões faltantes. No outro dia a aproximação facial já estava pronta e em três dias o texto deste capítulo estava quase finalizado. Apenas neste terceiro dia é que os autores se deram conta, sob grande admiração, que o crânio estava disponível para download.
Diante de tal novidade, optaram por aproveitar a oportunidade para comparar o crânio digitalizado por fotogrametria com o modelo original, baixado do perfil do Museu de História Natural de Viena, no Sketchfab. O objetivo era mensurar o erro de redimensionamento e, uma vez dimensionado corretamente, comparar as malhas, de modo a atestar as proporções da fotogrametria em relação ao modelo real.
Os modelos foram então alinhados de modo que se encontrassem na mesma rotação, ou seja, no plano horizontal de Frankfurt. Foi possível atestar a diferença de escala entre eles, ainda que a proporção parecesse compatível (Fig. 8, A). A diferença da escala é facilmente explicável, pela dificuldade de se posicionar uma referência ortográfica em uma foto com deformação de perspectiva. Mesmo com uma imagem frontal e uma lateral, a perspectiva pode gerar erros de escala. Ao se redimensionar os dois modelos a compatibilidade das malhas se mostrou mais do que satisfatória (Fig. 8, B, C) e a margem de erro foi pequena, uma vez que o modelo da fotogrametria foi do fator 1,00000 para o fator 1,03351, ou seja, houve uma ampliação de 3,55% em cada eixo (X, Y, Z). Tal diferença em um eixo isolado é pequena, mas amplia-se dependendo das dimensões a serem utilizadas. Por exemplo, se tal margem for aplicada em dois eixos (área quadrada) resultará no seguinte fator: ((1,03351^2)-1)*100 = 6,81% de erro. Se tal margem for aplicada em três eixos (volume), resultará no seguinte fator: ((1,03351^3)-1)*100 = 10,39%. O modelo original (Sketchfab) e o modelo advindo da fotogrametria foram exportados ao software CloudCompare, de modo que as malhas fossem comparadas (Fig. 8, D). A precisão final dos modelos resultante foi submilimétrica (Fig. 8, E), tendo como média o valor de -0,28 mm, ou seja, o modelo da fotogrametria em geral é ligeiramente menor do que o original. O desvio padrão foi de 0,58 mm.
Ao se redimensionar o endocrânio, o novo valor resultante foi de 1481 ml, ou seja, 10,39% a mais do que o valor anterior que era 1342 ml, e o novo valor se manteve dentro do desvio padrão de indivíduos modernos, cujo volume máximo seria 1492 (1328 ± 164 ml). Ao se comparar com o volume obtido por Prossinger & Teschler-Nicola (2006), de 1575 ml, a diferença caiu para 94 ml, ou 5,97% a menos em relação à peça real. Soma-se a isso o já discutido estado do crânio do doador virtual, que se encontra saudável e com uma média de espessura óssea maior do que o fóssil Mladeč 1, temos uma diferença dentro do esperado.
Conclusão¶
O presente capítulo mostrou que a deformação anatômica converge para um mesmo perfil na aproximação facial forense, seja o doador virtual do sexo masculino ou feminino, tendo resultados ainda melhores quando os IMCs dos doadores são iguais. A fotogrametria por captura de vídeo em modelos interativos online gerou uma malha compatível com o original, atestando a robustez do método. A referência de escala ortográfica em uma fotografia com deformação de perspectiva gerou um pequeno erro, mas que não foi suficiente para comprometer os resultados, principalmente na aproximação facial, pois parte das projeções estatísticas são calculadas proporcionalmente, bem como a malha interpolada da deformação anatômica, logo, em ambas situações o erro de escala não fez diferença significativa. Já as projeções por média se mantiveram dentro do desvio padrão, uma vez que são unidimensionais e mesmo no caso de extrações volumétricas como o endocrânio, os resultados se mantiveram dentro do desvio padrão da média esperada para humanos modernos e também se adequaram a parâmetros de crânios saudáveis, uma vez que o erro foi pequeno em relação ao fóssil, cuja superfície reconstruída internamente se apresentou mais irregular e mais fina do que aquela de endocrânios de indivíduos vivos.
Agradecimentos¶
Agradecemos a Administração das Cavernas da República Tcheca, ao Museu de História Natural de Viena, que forneceu não apenas o modelo em 3D interativo do fóssil Mladeč 1, mas também, de modo surpreendente e quase inacreditável, a malha do crânio em formato Wavefront (.OBJ) para download. Agradecemos a todos os autores que publicaram a obra Early Modern Humans at the Moravian Gate, que serviu como base da pesquisa, oferecendo dados importantíssimos para viabilizar o trabalho aqui apresentado. Agradecemos também ao Dr. Richard Gravalos que gentilmente cedeu as tomografias dos doadores virtuais.
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