Agrupamento em Clusters de Populações a partir de Comparações com a Distância Orbital Frontomalar (fmo-fmo)

Cicero Moraes
3D Designer Especialista em Aproximação Facial Forense, Arc-Team Brazil, Sinop-MT

Ilie Suharschi
Professor Associado, Departamento de Cirurgia oral e Maxilofacial e Implantologia Oral Arsenie Gutan, “Nicolae Testemitanu” Universidade Estatal de Medicina e Farmácia da República da Moldávia, Chisinau-Moldávia

Johari Yap Abdullah
Laboratório de Imagem Craniofacial, School of Dental Sciences, Universiti Sains Malaysia, Kelantan - Malásia

Dong Ngoc Quang
Cirurgião Buco Maxilo Facial, Departamento de Cirurgia Plástica e Estética, National Hospital of Odonto-Stomatology, Hanói-Vietnã

Moacir Elias Santos
Arqueólogo, Museu de Arqueologia Ciro Flamarion Cardoso, Ponta Grossa-PR

Marcos Paulo Salles Machado
Perito Legista Cirurgião-Dentista; Vice-diretor do Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto- RJ; Professor da Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro-RJ

Thiago Leite Beaini
Cirurgião Dentista, Professor Assistente - Faculdade de Odontologia da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia-MG

Data da publicação: 27 de junho de 2022
ISSN: 2764-9466 (Vol. 3, nº 1, 2022)
ISBN: 978-65-00-47050-5

O presente capítulo propõe a utilização de três medidas da região da órbita para uma distribuição gráfica bidimensional na forma de clusters populacionais.

Atenção

Este material utiliza a seguinte licença Creative Commons: Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0).

Introdução

A estimativa de ancestralidade a partir do crânio é uma das abordagens mais desafiadoras no processo de aproximação facial forense. Existem várias técnicas disponíveis, desde aquelas com a mensuração de algumas regiões do crânio [A34], outras com estimativa de rating [A8] e até aquelas baseadas em inteligência artificial [A26]. É fato que nenhuma delas oferece um grau de certeza de 100% em face aos resultados, abrindo espaço para estudos que possam complementar essa área da antropologia. No caso da aproximação facial forense, algumas características relacionadas à ancestralidade podem fazer significativa diferença na compatibilização da aproximação com a face real.

Materiais e Métodos

O presente capítulo propõe a utilização de três medidas para uma distribuição gráfica bidimensional na forma de clusters populacionais, ou seja uma abordagem a partir da aglomeração de pontos em um quadrante. Em estudos anteriores [A19][A13] [A24] os autores observaram que uma série de projeções podem ser efetuadas a partir da distância dos pontos orbitais frontomalares (fmo-fmo), dentre elas a dos lábios (ch-ch) que corresponde em média a 50% do espaço fmo-fmo, a das asas nasais (al-al, que corresponde a 39%, da abertura dos olhos que corresponde a 30%, da distância entre os centros dos globos oculares (pu-pu), que corresponde a 66%, das distância entre as cristas cervicais dos dentes 17 e 27 (emc²-emc²), que corresponde a 100% e inclusive da altura das orelhas, que corresponde a 60% do espaço fmo-fmo (Fig. 1).

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Medidas utilizadas para os fatores utilizados na criação dos clusters.

Em face da evidente importância do espaço fmo-fmo, de algumas diferenças analisadas entre grupos populacionais efetuadas no primeiro estudo de mensuração [A19] e, finalmente, da importância da região dos olhos na aproximação facial forense, os autores decidiram averiguar algumas proporções a partir da distância fmo-fmo. A primeira proporção diz respeito à porcentagem da distância ortográfica do rhinion (rhi) até a borda lateral mais extrema das órbitas (ec) em relação ao fmo-fmo. A segunda proposição diz respeito à porcentagem distância ortográfica da glabela (G) até o nasion (N). A primeira corresponde ao eixo X e a segunda ao quadrante Y.

Todos os crânios foram posicionados no plano de Frankfurt para que as medidas fossem efetuadas e todos os pontos anatômicos utilizados no presente capítulo seguiram a publicação A standardized nomenclature for craniofacial and facial anthropometry de Caple e Stephan 2016 [A3].

Para a realização das medições foram selecionados 181 exemplares, que se dividem em dois grandes grupos, sendo o primeiro formado por crânios arqueológicos e o segundo por crânios de indivíduos contemporâneos. Assim subdivididos, com a respectivas quantidades:

  1. Crânios de populações paleoamericanas (AMERICAN ARCHAEO) - n=15;

  2. Crânios remodelados de indivíduos antigos naturais da América (AM RESHAPED), dentre os quais estão a Dama dos Quatro Tupus e a Senhora de K’anamarka - n=4.

  3. Crânios de populações europeias antigas (EUROPEAN ARCHAEO) - n=16;

  4. Crânios de egípcios antigos – tomografias de múmias (EGYPTIAN MUMMIES) - n=8;

  5. Crânios de malaios contemporâneos - tomografados (MALAYSIAN) - n=50;

  6. Crânios de vietnamitas contemporâneos - tomografados (VIETNAMESE) - n=10;

  7. Crânios de moldavos contemporâneos - tomografados (MOLDOVAN) - n=50;

  8. Crânios de brasileiros contemporâneos de todas as ancestralidades - tomografados (BRAZILIAN) - n=24;

  9. Crânios de brasileiros contemporâneos com ancestralidade africana - tomografados (BRAZILIAN/AFRI) - n=4;

Todos os crânios foram digitalizados e/ou mensurados no ambiente do add-on OrtogOnBlender [A15]. No caso das tomografias efetuadas em indivíduos vivos, os dados foram colhidos de estudos realizados para a projeção de partes moles a partir do crânio [A19][A13] [A24]. Os crânios arqueológicos, em sua maioria, se tratam de aproximações faciais forenses efetuadas por um dos autores e cujo trabalho está disponível de modo online.

Os autores optaram por plotar os dados utilizando a linguagem de programação Python, especificamente com a biblioteca Matplotlib (Fig. 2). Graças a uma vasta oferta de documentação e tutoriais disponíveis abertamente pela internet, foi possível elencar a melhor abordagem gráfica, baseada em elipses de intervalo de confiança.

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Gráfico não tratado, contendo apenas os pontos relacionados aos indivíduos de 7 grupos diferentes.

Os dados colhidos foram enviados a uma planilha online do Google Docs, onde calculou-e automaticamente os fatores de porcentagem da região nariz (((rhi_ec)*100)/fmo_fmo) e da região da glabela (((g_n)*100)/fmo_fmo). Posteriormente tais fatores foram enviados a uma outra tabela com três colunas, a primeira com os resultados da glabela, a segunda com os resultados do nariz e a terceira com identificadores únicos relacionados aos grupos (0=AMERICAN ARCHAEO, 1 = MALAYSIAN, 2 = MOLDOVAN, etc.). As linhas, evidentemente, separavam os indivíduos mensurados. A última tabela, com 3 colunas e 181 linhas (o total era 177, mas 4 indivíduos do grupo de brasileiros com todas as ancestralidades, foram reutilizados em outro, de brasileiros com ancestralidade africana) foi salva como um arquivo de texto .CSV e sofreu algumas adequações para se converter em um arquivo .TXT sem vírgulas, com os dados separados por espaços e linhas, de modo que se compatibilizasse ao script proposto pelo exemplo apresentado na documentação da elipse de intervalo de confiança.

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Gráfico contendo os clusters populacionais e suas regiões de influência.

O gráfico cluster de dados por grupos foi trabalhado de modo a apresentar três elipses: a primeira com valor de 0.15 e alpha de 1, com a média geral da população, a segunda com valor de 0.66, com alpha 0 e linha 3, representando o desvio padrão e a terceira, com menos espessura e com maior transparência representa o intervalo de confiança de 95% (Fig. 3).

Resultados e Discussão

A partir da aplicação do método foram obtidos dados que permitiram algumas observações iniciais quanto ao posicionamento dos grupos e dos indivíduos. No caso dos grupos asiáticos contemporâneos, ou seja, dos malaios (MALAYSIAN), dos vietnamitas (VIETNAMESE) e de indivíduos antigos naturais da América (AM ARCHAEO), houve uma tendência de posicionamento à esquerda e ao centro da origem local dos grupos. Os indivíduos contemporâneos se encontraram mais à direita em relação aos crânios arqueológicos. No caso dos europeus, incluindo os grupos dos moldavos (MOLDOVAN) e os crânios de populações europeias antigas (EUROPEAN ARCHAEO), se mostraram próximos. Outrossim, os modernos ficaram mais à direita que os arqueológicos. Posteriormente voltaremos a este grupo e, por enquanto, podemos afirmar que o posicionamento está relacionado com as estruturas faltantes na região nasal dos crânios escavados. Pela ausência de crânios de populações africanas subsaarianas, os autores separaram um pequeno grupo de brasileiros com essa ancestralidade mais marcante (BRAZILIAN/AFRI) e a média se posicionou um pouco acima e à esquerda dos demais grupos. Tal posicionamento também será discutido posteriormente. Já grupo dos brasileiros contemporâneos (BRAZILIAN) se posicionou entre aqueles que representam os três agrupamentos humanos da antropologia atual, ou seja, dos clusters marcadamente asiáticos, europeus e africanos. Este resultado já era esperado, uma vez que a população brasileira passou por um grande processo de miscigenação ao longo dos últimos 500 anos. O grupo dos egípcios antigos, que incluía somente múmias que foram tomografadas, se apresentou mais à direita e próximo dos europeus. Tal resultado reflete a características dos crânios mensurados, contudo, um dos exemplares apresenta características diferentes, algo que também já tinha sido reconhecido, visto que a sociedade egípcia antiga recebeu migrações de diversas populações ao longo de seus três mil anos de história. O grupo originário de populações paleoamericanas com remodelagem craniana (AM RESHAPED) foi separado pelas suas características estruturais bastante peculiares. Tais características, em geral, os posicionou mais abaixo e ao centro, mas ainda dentro do intervalo de confiança do grande grupo AMERICAN ARCHAEO.

O Homem de Lagoa Santa

Desde as primeiras descobertas de Peter Lund na região de Lagoa, entre as décadas de 1830 e 1840, iniciou-se um debate sobre as origens do Homem de Lagoa Santa. Estudos foram feitos para correlacionar a antiguidade com fósseis da megafauna, na primeira metade do século XX, mas foi só a partir da segunda metade que estudos craniométricos foram realizados. Incialmente com Marilia de Melo Alvim, que defendia que os crânios de Lagoa Santa eram de uma população homogênea distinta dos indígenas atuais, nos anos de 1960-1970 [A4], e com Walter Neves, na década de 1990, que defendia a ideia de duas ocupações distintas. Estes estudos revelaram a compatibilidade com povos africanos e do sul do Pacífico [A27], no entanto, no final da década de 2010 a análise do DNA mitocondrial de indivíduos daquele grupo, com a contribuição de inúmeros pesquisadores, indicou uma grande afinidade com os povos asiáticos que colonizaram a América do norte para o sul [A25] [A29].

Neste estudo foram utilizados seis crânios da região de Lagoa Santa obtidos, majoritariamente, a partir de uma parceria estabelecida em 2017 com o Museu da Lapinha, localizado em Minas Gerais, Brasil. Neste mesmo ano, dois dos crânios foram elencados para serem reconstruídos com técnicas forenses. Em uma análise cega, um dos autores inferiu que um deles se tratava de um indivíduo de ancestralidade marcadamente africana (Apiuna), enquanto o outro apresentava características asiáticas (Diarum). Ao se observar a posição do Apiúna no quadrante proposto neste estudo, percebe-se que ele se localiza fora do intervalo de confiança de 95% do grupo AMERICAN ARCHAEO.

Em um trabalho recente em que estes crânios foram utilizados para a realização de aproximações faciais, verificou-se que parte do osso nasal dos exemplares estava danificado ou ausente. Nestes casos, reconstituições foram elaboradas de forma virtual. Um exemplo de correção estrutural pode ser visto no próprio Apiuna, cujo crânio original apresentou maior afinidade com outros dois crânios: um brasileiro de ancestralidade africana com nanismo (que foi adicionado posteriormente ao agrupamento de 181 indivíduos inicialmente previstos para o estudo); e um crânio vietnamita. Este problema na perda de parte do osso nasal também foi registrado em um dos exemplares egípcios. Trata-se da múmia Tothmea, que teve a face fragmentada nas décadas de 1920 ou 1930, quando ainda se encontrava na Vila de Round Lake, nos EUA. O dano foi causado por algum objeto que foi derrubado sobre ela. Na remontagem da face feita recentemente, não foi possível reconstituir o nasal em sua totalidade. Ao se corrigir o crânio Apiuna, houve um deslocamento para a direita no posicionamento do quadro geral aproximando-se, assim, da Tothmea e do grupo de brasileiros com ancestralidade africana. Outrossim, ainda se coloca distante do segundo, próximo do intervalo de confiança do AMERICAN ARCHAEO, e do VIETNAMESE, indicando que as caraterísticas de um indivíduo africano possam posicioná-los em um espaço acima, indo em direção ao centro em X do agrupamento local de todas as ancestralidades. No entanto a falta de mais crânios que pudessem ser analisados impede esse estudo de afirmar que tal área pertence a uma determinada ancestralidade, sendo ainda necessário mais análises com um número maior de indivíduos. Os demais exemplares de Lagoa Santa, com áreas faltantes corrigidas, se encontram dentro da região de influência AMERICAN ARCHAEO mas próximo a borda do limite do intervalo de confiança de 95%, o que pode contribuir para as dificuldade inerentes a definição global da aparência daquele povo. As informações desta distribuição estão representadas na figura 4.

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Gráfico contendo com as regiões de influência dos Crânios de malaios contemporâneos e Crânios de populações paleoamericanas em destaque, ao passo que apresentam resultados individuais nomeados.

Os Crânios Arqueológicos Moldavos

Durante o período em que esta pesquisa foi realizada, os autores receberam quatro crânios de um museu moldavo para posterior aproximação facial forense. Todos foram mensurados e os dados enviados para o cluster de pontos. Dos quatro crânios, dois se posicionaram dentro da região de influência dos moldavos modernos e outros dois na região de influência dos asiáticos. Até então nenhum dado acerca do sexo, idade e ancestralidade havia sido enviado à equipe, mas tais dados já tinham sido levantados por um especialista em antropologia forense. Ele observou que, potencialmente, três deles eram de europeus e um deles teria origem asiática.

Quando estas informações foram finalmente disponibilizadas pelo museu responsável pelo acervo, foi constatado que todos os crânios eram de europeus, mas dois deles contam com características classificadas como falso asiático, ou seja, o posicionamento dos crânios baseados em cluster indicam características estruturais de povos específicos. Isto explica a posição de dois deles dentro da área de influência mais à esquerda, conforme pode ser visto na figura 5.

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Gráfico contendo com as regiões de influência moldavos contemporâneos, ao passo que apresentam resultados individuais de crânios moldavos arqueológicos.

Indicativos Gerais de Posicionamento

Graças a todas essas mensurações foi possível traçar uma distribuição prévia dos três grandes grupos da antropologia forense: africanos, asiáticos e europeus. O grupo dos brasileiros ofereceu o maior número de variações, dentre todos os outros estudados e permitiu inclusive a separação de subgrupos como brasileiros africanos (BRAZ_AFRI), brasileiros asiáticos (BRAZ_ASIA), brasileiros europeus (BRAZ_EURO) e brasileiros miscigenados (BRAZ_MIX). A distribuição destes grupos pode ser visto na figura 6.

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Gráfico simplificado com grupos e subgrupos de brasileiros gerado no Google Docs.

Em todos esses grupos o posicionamento da média e desvio padrão se limitou às regiões compatíveis com as ancestralidades gerais. No caso do subgrupo asiático a média foi muito compatível a dos malaios, enquanto no caso do subgrupo europeu, a média gerou um posicionamento significativo maior à direita do que o grupo geral dos moldavos. A média dos brasileiros miscigenados se posicionou mais ao centro, próxima a média dos crânios arqueológicos europeus. Tal número de indivíduos permitiu a geração de um gráfico com regiões onde os grupos ancestrais têm um domínio maior, conforme exposto na figura 7. Para complementar tal distribuição, o levantamento de mais grupos populacionais se faz necessário.

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Gráfico com a distribuição colorizada em RGB representando as três grandes ancestralidades da antropologia.

Conclusão

A distribuição em clusters de dados colhidos na região das órbitas do crânio se mostrou eficaz no posicionamento dos pontos em relação a características pertencentes a grandes grupos antropológicos. Outrossim, ela não resolve sozinha todos os problemas e desafios da estimativa abordada, mas pode servir como uma ferramenta complementar para tal técnica. Uma possibilidade prática revelada durante os estudos do quadrante, foi a rápida averiguação de compatibilidade entre crânios, o que pode ser muito útil na aproximação facial forense atrelada à técnica de deformação anatômica [A20]. Ainda que os resultados sejam promissores, o número de indivíduos de ancestralidade africana se fez pequeno no cluster, o que evidencia a necessidade de um incremento futuro para que os dados sejam analisados novamente. O mesmo se aplica a outros grupos populacionais não contemplados no estudo.

Agradecimentos

Gostaríamos de expressar nossos agradecimentos especiais ao Museu Nacional de História da Moldávia, a Eugen Sava doutor em ciências históricas e ao Dr. Alexandru Varzari por nos fornecer informações importantes sobre o material arqueológico para este artigo.