Fotogrametria 3D de uma Ponta de Projétil Arqueológica

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  • Antonio Carlos Soares Mestre em História (PUCRS), Diretor do Museu Arqueológico do Rio Grande do Sul (Marsul)

  • Cicero Moraes 3D Designer, Arc-Team Brazil, Sinop-MT

DOI

https://doi.org/10.6084/m9.figshare.12894209


O presente capítulo tem por objetivo descrever a conversão de uma série de fotografias de uma ponta de projétil arqueológica em uma malha tridimensional texturizada por meio da seção de fotogrametria 3D do add-on OrtogOnBlender.

Importante

Este material utiliza a seguinte licença Creative Commons: Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0).

A Digitalização em Acervos Arqueológicos

A digitalização em acervos arqueológicos cumpre não apenas o papel importante para a comunicação museográfica, com a possibilidade de exposições virtuais, como pode auxiliar na pesquisa e na própria curadoria. As exposições digitais são inegavelmente vantajosas aos museus, no entanto, tal como as exposições físicas, devem observar planos expográficos e serem acompanhadas por profissionais da museologia. Existem peças em acervos arqueológicos que necessitam de ambientação adequada para sua conservação e o seu manuseio, por vezes, se configura em um risco para sua integridade. Neste ponto, a digitalização pode oferecer um acesso em meio digital aos acervos, com alta fidelização de detalhes, reduzindo a zero o risco que os objetos musealizados correriam ao serem manuseados e/ou expostos fisicamente, tanto por pesquisadores quanto pelo público em geral, ainda que em ambiente controlado. No caso da digitalização por fotogrametria, quando se utiliza uma série de fotografias de muitos ângulos dos objetos para gerar modelos digitais em três dimensões, se torna uma forma acessível e segura. Acessível porque com qualquer câmera digital pode ser utilizada para realização das imagens a serem convertidas em objetos 3D. Seguro, porque estas fotografias podem – e devem – ser realizadas nas reservas técnicas ou em estúdios montados especificamente para esta finalidade, com acompanhamento de profissionais responsáveis pela curadoria desses objetos.

Uma Ponta de Projétil Lítica Pré-Colonial

Diante desse cenário social de pandemia, e motivados pela realização do curso digitalização de acervo musealizado oferecido pela empresa de educação à distância OrtogOnLine, iniciamos a tarefa de digitalizar uma ponta de projétil, catalogada e salvaguardada no Marsul1. A ponta de projétil lítica, é uma entre centenas oriundas das pesquisas arqueológicas no sítio denominado como Cerrito Dalpiaz, localizado no distrito da Barra do Ouro, no município de Maquiné, no litoral norte do Rio Grande do Sul. Este sítio, pesquisado entre as décadas de 1960 e 1970, está situado ao pé da Serra do Umbú, e deu nome ao que se chamou de Tradição Arqueológica Umbú, definição atribuída ao tipo de cultura material produzida pelos grupos pré-coloniais caçadores-coletores dos pampas do sul do Brasil, do Uruguai e de parte da Argentina. Esses grupos chegaram às paisagens que atualmente denominamos como Rio Grande do Sul há aproximadamente 12 mil anos (Copé, 2013) [Moe13], e são considerados descendentes dos primeiros povoadores do continente Americano (Neves et. all., 2004) [NMHB04]. A ponta escolhida está vinculada a datações absolutas de aproximadamente cinco mil anos (Miller, 1969) [Mil69].

De acordo com Oliveira (2005) [dSdO05], é a partir de aproximadamente 9 mil anos antes do presente, na virada para o atual período geológico, o Holoceno, que houve diversas modificações climáticas, formando três tipos de paisagens distintas: o planalto, o pampa e a planície litorânea. “Entendendo-se a importância do meio ambiente, podemos nomear os grupos de acordo com a paisagem que habitavam” (Oliveira, 2005, p. 14). Estes caçadores e coletores das paisagens abertas, ou dos pampas, migraram para o leste e sul, ocupando os pampas e se abrigando em abrigos rochosos. Permaneceram com sua tradição lítica estável por aproximadamente 11 mil anos e são definidos como ancestrais dos povos charruas e minuanos (Guidon, 1992; Oliveira, 2005) [dC98].

As pontas de projétil em pedra lascada são os artefatos que caracterizam a cultura material associada a esses grupos, por isso escolhemos um exemplar para digitalizar e possivelmente compor futuras exposições físicas e virtuais.

Montando o Cenário

Para a fotografia de qualquer peça, precisamos imaginá-la em um cenário. Este cenário deve harmonizar com o objeto, compondo uma cena. No nosso caso, uma ponta de projétil lítica, em basalto, para digitalização, precisa ser contrastada com o cenário para que suas características sejam ressaltadas. Poderíamos fazer um pequeno fundo infinito com papel, de preferência alcalino. Poderíamos escolher, neste caso, tanto um fundo branco quanto um fundo preto para que o objeto seja destacado. Optamos pelo fundo preto e plano, já que o fundo será desprezado no processo de digitalização, buscamos a harmonização da cena que possibilitará mais nitidez para o objeto. Um fundo excessivamente contrastante pode gerar problemas com a fotometria, que comentaremos mais adiante. Um contraste excessivo, entretanto, ressaltaria a silhueta do objeto ofuscando seu corpo. Precisamos ressaltar, além da silhueta, todas características volumétricas da nossa ponta de projétil que será digitalizada. Nesse ponto é que entra a iluminação.

Produzindo a Iluminação

Por ser um objeto com lascamentos minuciosos, e por ser o objetivo das nossas seções fotográficas demonstrar o máximo desses detalhes, se fez necessária uma iluminação adequada para esse fim. Ao contrário do que se pensa comumente, uma boa iluminação não é sinônimo de muita iluminação. No nosso caso, e na maioria das vezes, o fotógrafo procura por uma angulação e intensidade acertadas de luz para ressaltar os aspectos desejados em toda a cena, sobretudo do motivo. No nosso caso, a ponta de projétil. Como escolhemos um fundo preto e o nosso objeto é em pedra basáltica, ou seja, tem uma coloração também escura, necessitaremos de luzes laterais com média intensidade a com aproximadamente 35 a 45 graus de elevação em relação a peça. O objetivo aqui é produzir sombreamentos na superfície do objeto para ressaltar os seus detalhes. Dessa forma, lançaremos mão de um recurso extremamente profissional denominado pelos especialistas como luminárias de mesa! Duas luminárias com lâmpadas em led de nove watts, que geram aproximadamente 800 lumens cada, posicionadas nas laterais do objeto, e envolvidas por papel branco para fazer a função de filtro difusor evitando sombras duras. Obtivemos uma iluminação lateral de intensidade e angulação desejadas.

A Câmera e seus Ajustes

Ajustar a câmera, em que pese um arqueólogo fazendo o papel de fotógrafo em busca da digitalização por fotogrametria, e com um equipamento não profissional em mãos, a tarefa requer algum conhecimento básico sobre fotografia. A primeira coisa a se pensar é o posicionamento do equipamento. Como desejamos fotografias em série, e temos um mini estúdio, precisamos fixar a câmera. Utilizamos um tripé convencional para câmeras e posicionamos em uma distância aproximadamente de uns 20 centímetros a 45 graus da peça a ser fotografada. É importante observar o ajuste da distância da câmera para com o assunto, para que não se provoque distorções de perspectivas. No nosso caso específico, usamos um leve zoom ótico para simular uma lente de 35mm de uma câmera DSLR, como utilizamos uma câmera Fujifilm HS30exr, um equipamento dito semiprofissional.

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Cenário e fotos resultantes.

Fixado o equipamento, é preciso ajustar o setting da câmera para a cena. Como o nosso assunto tem dimensões pequenas, selecionamos a opção de macrofotografia. As câmeras em geral utilizam ajustes automáticos que podem gerar problemas com a fotometria, causando saturações indesejadas ou granulações. Então acertamos manualmente três valores importantes: a sensibilidade (ISO), a abertura do diafragma e a velocidade do obturador. Estes três valores são basicamente a alma da fotografia. A definição manual destes valores é possível em alguns equipamentos e são definidos a partir da fotometria, que no nosso caso, a própria câmera nos indicou da luminosidade da cena. Os fotômetros são opções mais profissionais neste caso. Lembrando que quanto menor a sensibilidade, maior é o tempo de exposição que o sensor necessitará para gerar uma imagem definida. Quanto maior for a abertura do diafragma, menor será a necessidade do tempo de exposição. Então, como uma boa iluminação, podemos reduzir a sensibilidade, para ter maior definição da imagem. Como não temos muita abertura de diafragma, que nos possibilitaria valores mais baixos de sensibilidade, utilizamos o valor de 100 de ISO, o menor valor disponível no nosso equipamento, a maior abertura de diafragma possível, sintonizando a velocidade do obturador para que o tempo de exposição produza a luminosidade adequada da fotografia. Os resultados finais, foram fotografias com um grau de detalhes satisfatórios para a fotogrametria (Figura 1).

Processo de Digitalização 3D

Uma vez com as capturas tomadas, as mesmas foram enviadas para dois diretórios distintos, cada um com uma face da ponta do projétil. Isso foi feito porque a sequência de fotos não contemplou uma rotação completa da peça “em pé”, mas apenas uma rotação em cada lado não contendo dados de transição entre eles. Em face disso, os autores optaram por fazer duas fotogrametrias distintas e depois uma união entre as mesmas que será abordada no decorrer desta explanação.

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Digitalização 3D dos dois lados do projétil.

Cada sequência de fotos passou por um processo de fotogrametria utilizando o algoritmo OpenMVG+OpenMVS rodando via OrtogOnBlender [MDdR20]. A face de cada lado (Figura 2, A e C) foi reconstruída de modo satisfatório, ao serem orbitadas as peças revelavam regiões não contempladas pela digitalização (B e D).

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Junção e reconstrução das partes em uma malha única.

As duas malhas resultantes do processo de digitalização 3D (Figura 3, a e b) são previamente segmentadas e alinhadas (a and b). Em seguida as regiões que não foram reconstruídas corretamente são apagadas (Segmented). As duas malhas são exportadas como um único objeto .STL. Este arquivo é importado no software MeshLab onde apenas as faces são deletadas, restando os vértices do objeto (Vertices). Em seguida é aplicado o algoritmo de reconstrução Poisson, que utiliza os dados dos vértices para reconstruir a malha em 3D. A malha reconstruída não contém textura.

Importante

A reconstrução da malha, além de garantir uma uniformidade maior à mesma, também permitirá o levantamento volumétrico, bem como a impressão 3D sem a necessidade de preparo adicional.

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Texturização da malha.

A texturização da malha é feita por projeção, utilizando como parâmetro o modelo unido anteriormente com os dois lados da lança, projetando a textura deles à malha reconstruída pelo algoritmo Poisson e devidamente importada no Blender (Figura 4).

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Modelo finalizado.

O resultado final do processo é um objeto tridimensional único, texturizado e com uma superfície limpa, compatível com a peça original (Figura 5).

Dica

Graças a flexbilidade do software Blender 3D, há ainda a possibilidade de simplificar o modelo e disponibilizar o mesmo de modo online com órbita 3D interativa: https://skfb.ly/6UIIr

Conclusão

O OrtogOnBlender em trabalho conjunto com o MeshLab, se mostrou uma completa ferramenta para a digitalização de uma ponta de projétil arqueológica, permitindo a configuração de um modelo editável em espaço tridimensional, que pode ser impresso em 3D e também visualizado de modo interativo na internet.

dC98

Manuela Carneiro da Cunha. História dos Índios do Brasil. Volume 1. Cia das Letras, 1998. ISBN 9788571642607. p. 37-52.

dSdO05

Elaine da Silveira and Lizete Dias de Oliveira. Síntese histórica do povoamento do Rio Grande do Sul. Volume 1. Ulbra, 2005. ISBN 8575281399. p. 11-34.

Mil69

Eurico Miller. Resultados preliminares das escavações no sítio pré-cerâmico RS-LN-1: Cerrito Dalpiaz (abrigo-sob-rocha). Iheringia, 1969. p. 43-112.

Moe13

Silvia Moehlecke. 12000 anos de história: arqueologia e pré-história do Rio Grande do Sul. UFRGS, 2013. Catálogo da exposição organizado pelo Museu da UFRGS.

MDdR20

Cicero Moraes, Everton da Rosa, and Rodrigo Dornelles. OrtogOnBlender - Documentação Oficial vol. 3. Cicero André da Costa Moraes, 2020. ISBN 9786500053494. p. 34-37. doi:10.6084/m9.figshare.12871730.v1.

NMHB04

Walter A. Neves, Pedro A. Mentz Ribeiro Mark Hübbe, and Danilo Bernardo. Afinidades morfológicas de três crânios associados à tradição Umbu: uma análise exploratória multivariada. UNISC, 2004. Revista do CEPA 28(39): 159-185.